“Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade,
da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se
cumpra”. Com as palavras do então presidente da Assembleia Nacional
Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, proferidas na tarde de 5 de outubro
de 1988, em audiência histórica no plenário da Câmara dos Deputados, entrava em
vigor a Constituição Federal da Republica Federativa do Brasil.
A Carta da República de 1988, chamada de constituição-cidadã
pelo deputado Ulysses Guimarães, é considerada até hoje uma das mais avançadas
e democráticas do mundo, no que diz respeito aos direitos e garantias
individuais do cidadão.
Presidente do STF na data da promulgação da Constituição, o
ministro aposentado Rafael Mayer explica que Ulysses denominou a Carta de
cidadã “referindo-se à intensa participação popular na elaboração do texto –
porque quem quis se manifestou e foi acolhido”, disse o ministro em entrevista
concedida ao site do Supremo à época da comemoração dos 20 anos da Constituição.
Para o ministro, a maior conquista do texto constitucional
foi o estabelecimento do Estado Democrático de Direito. De acordo com Mayer, a
Carta fortaleceu direitos e garantias individuais que, até então, haviam sido
suprimidos. “O cidadão se sentiu seguro e protegido diante do Estado. Muita
gente reclama por ser uma Carta muito detalhista. Mas isso é, de certa forma,
muito bom, porque mais assuntos se tornaram constitucionais e realmente
ajudaram na transformação histórica e social do Brasil”.
Guardião
É a própria Constituição que define, em seu artigo 102, que
cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) ser o guardião dos ditames nela
contidos. Para isso, entre outros avanços, o constituinte originário ampliou a
relação dos legitimados para propor ações que provoquem a Suprema Corte a
definir sobre a constitucionalidade em abstrato de leis e atos judiciais,
sempre com base na fiel interpretação dos dispositivos da Lei Maior.
Antes de 1988, apenas o procurador-geral da República podia
ajuizar ações de controle abstrato de constitucionalidade. Com o advento da
Carta Federal, foram incluídas, como partes legítimas para impugnar normas, o
presidente da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados,
das Assembleias Legislativas estaduais e da Câmara Legislativa do Distrito
Federal, os governadores de estado e do DF, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, os partidos políticos com representação no Congresso e as
confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.
Outro avanço que permitiu uma verdadeira revolução no
Supremo Tribunal, em termos de racionalização de seu funcionamento e, em
consequência, no desempenho de seu papel como Corte Constitucional, se deu por
meio de uma das 67 emendas à Constituição promulgadas ao longo dos últimos 23
anos. A Emenda 45/2004, que introduziu a Reforma do Judiciário, permitiu a
adoção de dois institutos pelo STF que se têm mostrado de extrema eficácia: a
Súmula Vinculante e a Repercussão Geral. No primeiro, as decisões sumuladas com
caráter vinculante são seguidas por todos os juízes e observadas pela
Administração Pública.
Com a Repercussão Geral, o STF tem a possibilidade de eleger
os temas sobre os quais vai se pronunciar. O reconhecimento da repercussão de
um tema faz parar a movimentação de todos os processos semelhantes no país, que
ficam aguardando a decisão da Corte no chamado “processo paradigma”. A decisão
tomada nesse processo é aplicada automaticamente aos demais.
A Constituição e o Supremo
Um exemplo do trabalho realizado pelo STF como guardião da
Carta Magna pode ser visto na obra A Constituição e o Supremo, atualmente uma
das cinco páginas mais acessadas no portal de internet da Corte. A página
apresenta o texto da Constituição Federal de 1988 interpretado de acordo com a
jurisprudência firmada pelo Supremo, reunindo os tópicos constitucionais
discutidos em julgamentos do Tribunal, seguidos da síntese do teor da decisão
(ementa). A obra, que terá a quarta edição impressa lançada no ano que vem,
possui atualmente mais de oito mil notas inseridas.
Grandes Temas
Nesses 23 anos, foram vários debates de grande repercussão
nacional - e até internacional - em que os ministros do STF tiveram que se
debruçar sobre o texto constitucional para decidir grandes temas sociais.
Foi da análise, entre outros, do artigo 3º, IV, da Carta
Federal, dispositivo que veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça,
cor e que os ministros reconheceram, em maio de 2011, que a Constituição
brasileira assegura o reconhecimento das uniões homoafetivas (ADI 4277 e ADPF
132).
A interpretação de diversos dispositivos da Constituição que
garantem o direito à vida, à saúde, ao planejamento familiar e à pesquisa
científica levou a Corte a decidir, em maio de 2008, pela legalidade da
utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa para curar doenças (ADI
3510), entendendo que essas pesquisas não atentam contra o princípio à vida
humana.
A Corte também fez uma leitura conjunta de diversos artigos
da Constituição para reconhecer a legalidade da demarcação contínua da área
indígena Raposa Serra do Sol, em março de 2009. De acordo com relator da PET
3388, ministro Ayres Britto, a Constituição Federal – por meio dos artigos 231,
232 e outros dispositivos esparsos, num total de 18 dispositivos sobre o tema –
“quis dar um fim numa visão portuguesa da questão indígena, ver os índios como
se fossem inferiores e como se não pudessem com sua cultura específica
contribuir para afirmação do caráter nacional para plasmar o caráter nacional”.
A Corte tem decidido, em diversos processos, que o Sistema
Único de Saúde (SUS) deve fornecer remédios de alto custo ou tratamentos não
oferecidos pelo sistema a pacientes de doenças graves que recorreram à Justiça.
O entendimento do STF tem lastro na Constituição, como explicou o decano da
Corte, ministro Celso de Mello, no julgamento da STA 175, realizado em março de
2010. Para o ministro, “o direito à saúde representa um pressuposto de quase
todos os demais direitos, e é essencial que se preserve esse estado de
bem-estar físico e psíquico em favor da população, que é titular desse direito
público subjetivo de estatura constitucional, que é o direito à saúde e à
prestação de serviços de saúde”.
A liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV) e
da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação
(artigo 5º, IX), foram alguns dos dispositivos constitucionais que embasaram a
decisão da Corte no julgamento do RE 511961, realizado em junho de 2009, quando
o Supremo reconheceu como inconstitucional a exigência do diploma para o
exercício da profissão de jornalista.
Em 2009, num dos julgamentos mais importantes do ano, o
Supremo declarou, por maioria de votos, que a Lei de Imprensa (Lei nº 5250/67)
é incompatível com a atual ordem constitucional. No julgamento da ADPF 130, o
ministro Ayres Britto salientou que a História ensina que, em matéria de
imprensa, não há espaço para o meio-termo: ou a imprensa é inteiramente livre,
ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica. Para o relator da ação, a imprensa livre
contribui para a concretização dos mais importantes preceitos constitucionais,
a começar pelos princípios da soberania (artigo 1º, inciso I) e da cidadania
(inciso II do mesmo artigo). “A Imprensa passa a manter com a democracia a mais
entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação”, salientou em um
das passagens de seu voto.
Embora a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso
LXVII, ainda admita a prisão do depositário infiel, o STF reformulou, em dezembro
de 2008, sua jurisprudência (RE 466343) para isentar de prisão civil por dívida
o depositário infiel, mantendo a sanção apenas para o devedor de pensão
alimentícia. Com isso, a Suprema Corte brasileira adaptou-se não somente ao
Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos e a Convenção Americana
Sobre Direitos Humanos (mais conhecido como Pacto de San José da Costa Rica),
como também ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU e a
Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá
(Colômbia).
Uma decisão histórica do STF, tomada em agosto de 2008 (ADC
12), proibiu o nepotismo (contratação de parentes) no Poder Judiciário e, em
seguida, foi estendida à administração pública direta e indireta em qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios por meio da
Súmula Vinculante 13. A partir desta decisão, que teve grande repercussão na
sociedade, os familiares não concursados dos servidores públicos estão
impedidos de exercer funções de direção e assessoramento e cargos de chefia. O
relator da ação, ministro Ayres Britto, salientou, na ocasião, que a decisão
instaurava uma nova cultura, ao quebrar paradigmas. O decano da Corte, ministro
Celso de Mello, destacou que “quem tem o poder e a força do Estado em suas mãos
não tem o direito de exercer em seu próprio benefício, ou em benefício de seus
parentes ou cônjuges, ou companheiros, a autoridade que lhe é conferida pelas
leis desta República”.
Com base no princípio da dignidade humana estabelecido no
rol dos direitos e garantias dos cidadãos (artigo 5º) da Constituição de 1988,
o STF decidiu, por unanimidade de votos em agosto de 2008 (HC 91952), que o uso
de algemas só deve ser adotado em casos excepcionalíssimos. Os ministros consideraram
ainda que o fato de o réu permanecer algemado perante os jurados influi na
decisão. Diante da importância do assunto, o Tribunal editou a Súmula
Vinculante 11, na qual assentou que só é lícito o uso de algemas em casos de
resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física
própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros. Antes mesma da edição da
súmula, o STF determinou que a decisão fosse comunicada ao ministro da Justiça
e aos secretários de Segurança Pública dos 26 estados brasileiros e do Distrito
Federal.
Em fevereiro de 2006, o STF permitiu a progressão de regime
prisional em favor de condenados por crimes hediondos ao declarar
inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90. A matéria foi
analisada no HC 82959, envolvendo um condenado a 12 anos e três meses de
reclusão por molestar três crianças (atentado violento ao pudor). A decisão foi
tomada por apertada maioria (6 votos a 5) e prevaleceu o voto do relator,
ministro Marco Aurélio, para quem a garantia de individualização da pena
inserida no rol dos direitos assegurados pelo artigo 5º da Constituição
Federal, inclui a fase de execução da pena aplicada e, por isso, não é viável
afastar a possibilidade de progressão.
O dispositivo constitucional que protege a fauna e a flora e
coíbe as práticas que submetam os animais à crueldade (artigo 225 da
Constituição) foi aplicado pelo STF em pelo menos dois julgamentos de grande
repercussão e que envolvem tradições culturais um tanto quanto questionáveis em
tempos de atitudes “ecologicamente corretas”.
No primeiro julgamento (RE 153531), a Segunda Turma do STF decidiu, por
maioria de votos, em fevereiro de 1997, que a obrigação do Estado de garantir a
todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a
difusão das manifestações, não o isenta de observar a norma constitucional que
proíbe a submissão de animais à crueldade. O recurso, ajuizado por uma
associação de proteção aos animais de Santa Catarina, resultou na proibição da
“Farra do Boi” no estado. No segundo caso, e mais recente (maio de 2011), o
Plenário declarou inconstitucional a lei fluminense que permitia a realização
de “Brigas de galo” no estado, ao julgar procedente a ADI 1856, proposta pela
Procuradoria Geral da República.
Anencéfalos
Entre os grandes julgamentos esperados para os próximos
meses está a ADPF 54, de relatoria do ministro Marco Aurélio, que discute um
dos temas mais polêmicos em tramitação no STF - a possibilidade de interrupção
terapêutica da gestação de fetos anencéfalos (sem cérebro). O relator concluiu
seu voto em março deste ano e já liberou o processo para que entre em pauta,
mas ainda não há previsão de data. A ação foi ajuizada pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que defende a descriminalização da
antecipação do parto nesses casos sob alegação de que ofende a dignidade humana
da mãe o fato de ela ser obrigada a carregar no ventre um feto que não
sobreviverá depois do parto. A questão é tão controversa que foi tema de
audiência pública em 2008 no STF, que reuniu representantes do governo,
especialistas em genética, entidades religiosas e da sociedade civil, em quatro
dias de discussão.
MB,VP/EH
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